✟ Contos de Halloween ✟

""não fui o que os outros foram
não vi o que os outros viram
mas por isso, o que amei,
amei sozinho."



"⁠Na infância, não fui como os outros
e nunca vi como outros viam.

as minhas paixões, não me vinham
de fonte igual à deles;

e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que despertava
o coração para a alegria.

tudo o que amei, amei sozinho.

assim, na minha infância, no alvor
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.

veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;

e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;

e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,

só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demónio, ante meus olhos."

O CORVO


"Certa vez, quando, à meia-noite eu lia, débil, extenuado,
um livro antigo e singular, sobre doutrinas do passado,
meio dormindo- cabeceando- ouvi uns sons trêmulos,
tais como se leve, bem de leve, alguém batesse à minha porta.
"é um visitante", murmurei, "que bate leve à minha porta.
apenas isso, e nada mais."


bem me recordo! era em dezembro. um frio atroz, ventos cortantes...
morria a chama no fogão, pondo no chão sombras errantes.
eu nos meus livros procurava- ansiando as horas matinais-
um meio (em vão) de amortecer fundas saudades de lenora,
bela adorada, a quem, no céu, os querubins chamam lenora,
e aqui, ninguém chamará mais.

e das cortinas cor de sangue, um arfar soturno, e brando, e vago
causou-me horror nunca sentido, horror fantástico e pressago.
então, fiquei (para acalmar o coração de sustos tais)
a repetir: "é alguém que bate, alguém que bate à minha porta;
algum noturno visitante, aqui batendo à minha porta;
é isso! é isso e nada mais!"


fortalecido já por fim, brado, já perdendo a hesitação:
"senhor! senhora! quem sejais! se demorei peço perdão!"
eu dormitava, fatigado, e tão baixinho me chamais,
bateis tão manso, mansamente, assim de noite à minha porta;
que não é fácil escutar. porém só vejo, abrindo a porta,
a escuridão, e nada mais.

perquiro a treva longamente, estarrecido, amedrontado,
sonhando sonhos que, talvez, nenhum mortal haja sonhado.
silêncio fúnebre! ninguém. de visitante nem sinais.
uma palavra apenas corta a noite plácida: "lenora!".
digo-a em segredo, e num murmúrio, o eco repete-me- "lenora!"
isto, somente- e nada mais.

para o meu quarto eu volto enfim, sentindo n'alma estranho ardor,
e novamente ouço bater, bater com mais vigor.
"vem da janela", presumi, "estes rumores anormais.
mas eu depressa vou saber donde procede tal mistério.
fica tranqüilo, coração! perscruta, calmo, este mistério.
é o vento, o vento e nada mais!"


eis, de repente, abro a janela, e esvoaça então, vindo de fora,
um corvo grande, ave ancestral, dos tempos bíblicos, - d'outrora!
sem cortesias, sem parar, batendo as asas noturnais,
ele, com ar de grão-senhor, foi, sobre a porta do meu quarto,
pousar num busto de minerva, - e sobre a porta do meu quarto
quedou, sombrio, e nada mais.

eu estava triste, mas sorri, vendo o meu hóspede noturno
tão gravemente repousado, hirto, solene e taciturno.
"sem crista, embora" - ponderei-, "embora ancião dos teus iguais,
não és medroso, ó corvo hediondo, ó filho errante de plutão!
que nobre nome é acaso o teu, no escuro império de plutão?"

e o corvo disse: "nunca mais!"

fiquei surpreso- pois que nunca imaginei fosse possível
ouvir de um corvo tal resposta, embora incerta, incompreensível,
e creio bem, em tempo algum, em noite alguma, entes mortais
viram um pássaro adejar, voando por cima de uma porta,
e declarar (do alto de um busto, erguido acima de uma porta)
que se chamava "nunca mais".

porém o corvo, solitário, essas palavras só murmura,
como que nelas refletindo uma alma cheia de amargura.
depois concentra-se e nem move- inerte sobre os meus umbrais-
uma só pena. exclamo então: "muitos amigos me fugiram...
tu fugiras pela manhã, como os meus sonhos me fugiram..."

responde o corvo: "oh! nunca mais!"

pasmo, ao varar o atroz silêncio uma resposta assim tão justa,
e digo: "certo, ele só sabe essa expressão com que me assusta.
ouviu-a, acaso, de algum dono, a quem desgraças infernais
hajam seguido, e perseguido, até cair nesse estribilho,
até chorar as ilusões com esse lúgubre estribilho
de- 'nunca mais!' oh! nunca mais!".


de novo, foram-se mudando as minhas mágoas num sorriso...
então, rodei uma poltrona, olhei o corvo, de improviso,
e nos estofos mergulhei, formando hipóteses mentais
sobre as secretas intenções que essa medonha ave agoureira
rude, sinistra, repulsiva e macilenta ave agoureira,
tinha, grasnando "nunca mais".

mil coisas vagas pressupus... não lhe falava, mas sentia
que me abrasava o coração o duro olhar da ave sombria.
... e assim fiquei, num devaneio, em deduções conjeturais,
minha cabeça reclinando- à luz da lâmpada fulgente
nessa almofada de veludo, em que ela, agora, à luz fulgente,
não mais descansa- ah! nunca mais.

subitamente o ar se adensou, qual se em meu quarto solitário,
anjos pousassem, balançando um invisível incensário.
"ente infeliz" - eu exclamei. - "deus apiedou-se dos teus ais!
calma-te! calma-te e domina essas saudades de lenora!
bebe o nepente benfazejo! olvida a imagem de lenora!"

e o corvo disse: "nunca mais."

"profeta!" - brado. "anjo do mal, ave ou demônio mais irreverente
que a tempestade, ou satanás, aqui lançou tragicamente,
e que te vês, soberbo, nestes desertos areais,
nesta mansão de eterno horror! fala! responde ao certo! fala!
existe bálsamo em galaad? existe? fala, ó corvo! fala!"

e o corvo disse: "nunca mais."

"profeta!" - brado. "anjo do mal, ave ou demônio irreverente,
dize, por deus, que está nos céus, dize! eu to peço humildemente,
dize a esta pobre alma sem luz, se lá nos páramos astrais,
poderá ver, um dia, ainda, a bela e cândida lenora,
amada minha, a quem, no céu, os querubins chamam lenora!"

e o corvo disse: "nunca mais."

"seja essa frase o nosso adeus" - grito, de pé, com aflição.
"vai-te! regressa à tempestade, à noite escura de plutão!
não deixes pluma que recorde essas palavras funerais!
mentiste! sai! deixa-me só! sai desse busto junto à porta!
não rasgues mais meu coração! piedade! sai de sobre a porta!"

e o corvo disse: "nunca mais."

e não saiu! e não saiu! ainda agora se conserva
pousado, trágico e fatal, no busto branco de minerva.
negro demônio sonhador, seus olhos são como punhais!
por cima, a luz, jorrando, espalha a sombra dele, que flutua...
e a alma infeliz, que me tombou dentro da sombra que flutua,
não há de erguer-se, "nunca mais"."

ANNABEL LEE


"Foi há muitos e muitos anos já,
num reino ao pé do mar.
como sabeis todos, vivia lá
aquela que eu soube
amar;
e vivia sem outro pensamento
que amar-me e eu a adorar.
eu era criança e ela era criança,
neste reino ao pé do mar;
mas o nosso amor era mais que amor --
o meu e o dela a amar;
um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.
e foi esta a razão por que, há muitos anos,
neste reino ao pé do mar,
um vento saiu duma nuvem, gelando
a linda que eu soube amar;
e o seu parente fidalgo veio
de longe a me a tirar,
para a fechar num sepulcro
neste reino ao pé do mar.
e os anjos, menos felizes no céu,
ainda a nos invejar...
sim, foi essa a razão,
como sabem todos, neste reino ao pé do mar,
que o vento saiu da nuvem de noite
gelando e matando a que eu soube amar.
mas o nosso amor era mais que o amor
de muitos mais velhos a amar,
de muitos de mais meditar,
e nem os anjos do céu lá em cima,
nem demônios debaixo do mar
poderão separar a minha alma da alma
da linda que eu soube amar.
porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
da linda que eu soube amar;
e as estrelas nos ares só me lembram olhares
da linda que eu soube amar;
e assim estou deitado toda a noite ao lado
do meu anjo,
meu anjo, meu sonho e meu fado
,
no sepulcro ao pé do mar,
ao pé do murmúrio do mar."